Como saber se uma cena do
cotidiano ficará na nossa memória por toda vida ou será esquecida dias depois? Um episódio marcante é facilmente relembrado, como o primeiro beijo, um
anúncio de falecimento, o primeiro dia de aula ou trabalho, uma briga intensa,
e coisas similares. Mas quando se trata de um evento comum, como entrar
em casa com sua madrinha, ou andar de patins com seu pai, admirar uma foto
avulsa, ou ver um desconhecido na rua, o que torna tais circunstâncias
memoráveis?
...
Eu participava de uma feira do
conhecimento, parecida com aquelas feiras de ciência dos filmes. Mas era de todas as matérias. Eu estava no bloco da matemática,
obviamente. A matemática sempre teve um papel especial na
minha vida. A professora me liberou por alguns
momentos e eu fui olhar algumas salas. Entrei na de inglês: era outra
matéria que me fascinava. Mas naquele ano o espanhol estava junto. Havia fotos
de vários países onde a língua pátria era uma das duas. Olhei várias,
inclusive uma que tinha um castelo, e outra que tinha um homem de sunga na
praia. Não era uma pessoa chamativa: eu diria que tinha sua beleza, mas não me apegaria a isso, não era algo destoante tão marcante.
(...)
Era a última semana de aula de
2003. Eu queria achar o irmão de um garoto que eu gostava. Parecia que iam mudar de colégio e eu queria confirmar a história. Andando em uma rua
próxima ao colégio avistei um homem que não conhecia. “Buenas”, ele disse.
Respondi com um sorriso. Continuei minha busca e o homem sumiu na multidão, do mesmo jeito que chegou.
(...)
Não me lembro do motivo de estar
subindo até o terceiro andar. Segurava o fichário nas mãos, e ia contra um
enxame de pessoas que desciam. Acho que seguia alguém, pois quando trombamos
nossos ombros, eu não olhava por onde andava, mas fixamente para algum lugar
que já me esqueci. Derrubei minhas coisas, ele se virou pra me ajudar e pedir
desculpas. A culpa foi minha, pensei. Sorri e ele se foi. Nem cheguei a
agradecer.
(...)
Três cenas estranhas, que não
fazem sentido algum separadamente. Ainda mais quando se trata de um
desconhecido. Mas era sempre o mesmo desconhecido. Por que estes eventos
ficaram guardados? Só mais de um ano depois do primeiro caso eu iria saber.
No início ele era uma pessoa
normal. Absolutamente normal. Algumas amigas minhas retratavam seu deslumbre com a sua beleza, mas
nada do que elas falavam fazia sentido pra mim. Ou eu só não queria que fizesse. Começamos a conversar. Era
inteligente, notava-se rapidamente. Mas não era uma inteligência clássica e acadêmica, como um daqueles mini-gênios que aparecem em programas de TV ou são retratados na história, Stephen Hawking, Einstein, Marie Curie... Talvez ele dominasse a arte de fazer amigos. Fui me aproximando. Comecei a
notar seu perfume. Nunca encontrei semelhante, embora tivesse buscado
incansavelmente. Mas até então era só. Um perfume marcante e uma
boa conversa. Mas isso não era nem o começo do que estava reservado pra nós.
Era julho, 5 meses depois de nos
conhecermos de fato. Percebi que tudo o
que minhas colegas diziam no início do ano não só fazia sentido, como eu achava
ainda mais. Percebi que tinha conhecido a pessoa mais incrível do mundo. Ao
menos pra mim e pra outras dezenas de outras pessoas que
o conheciam também. Ele tinha sido assaltado, e precisava voltar à Argentina,
refazer seus documentos. Eu ficaria três semanas sem vê-lo, o que parecia ser
tempo demais. Despedimo-nos com um abraço apertado, e esqueci o resto do mundo
naquela hora. E mesmo sabendo que durou um bom tempo, sempre seria curto
demais. Quando nos separamos parecia que todos olhavam para nós. Virei-me e fui
embora sem olhar pra trás. A timidez ainda me sufocava um pouco.
Ao longo de um ano e meio,
conversamos muito (minhas contas de telefone que o digam!), e aprendemos muito
juntos. Mas, bem, ainda era o começo. Ele estava de partida. Não era como aquela,
de três semanas, ou como férias normais. Era definitivo. Talvez ele nunca mais
morasse aqui, e se voltasse, ficaria muitos anos fora. Bom, realmente não era
seu lugar. Não posso dizer que foi fácil vê-lo ir, muito pelo contrário.
Lembrava-me dele em cada esquina que conversamos, em cada coisa que
partilhamos. Senti muito sua falta, de verdade. Mas o que ele faria lá fora era
muito maior. Eu ainda não sabia.
Era uma quarta-feira de 2007, ultima
semana de aula, liguei o computador rapidamente, por 15 minutos. Não
havia motivo especial para isto, só vontade de checar as coisas. Entrei no
bate-papo (nem sei porquê, já que ia desligar o pc em minutos), e foi
quando o vi online. “Estou em BH”, ele diz, quando me viu entrar. Fiquei em
choque. Depois de me recuperar, perguntei se no dia seguinte ele tinha
compromisso. Só a tarde, foi a resposta. Marcamos de nos encontrar às 11:50
então. Eu nem sabia como faria isto, pois estaria em aula nessa hora. Mas eu
daria um jeito. Sempre dei.
No dia seguinte nos encontramos.
Ele não era mais a mesma pessoa que saiu daqui, a começar pela barba, que agora
estava enorme, e a cor do seu rosto, que agora estava queimada de sol, como se tivesse caminhado muito durante o dia nos últimos tempos. Começava uma nova fase pra mim naquele ano, e as coisas mudaram
também depois daquele encontro. Nos anos
seguintes nossas conversas se tornaram mais raras, porém cada vez mais
construtivas. Sempre tínhamos um detalhe para acrescentar, algo pra aprender um
com o outro, sobre política, sobre religião, sobre a vida e seus amores. Sobre
tudo enfim.
(...)
O amor não acaba, ele se
transforma.
E pode se transformar em várias
coisas. Há aqueles que se transformam em ódio. Aqueles que se transformam em
saudades. Aqueles que se transformam em amizade. E aqueles que se transformam
em mais amor ainda. Mas aquele que se amou tanto nunca lhe é indiferente. E foi
assim conosco. Quanto maior o salto, maior o tombo, é o que dizem. Depois de tudo que aconteceu aquele ano, decidi colocar as coisas em seus lugares, e viver uma nova vida. Nossa amizade pode não ser a mais intensa, ou mais bela, mas certamente deixou
marcas que nunca serão esquecidas, e mais que isso, que determinaram e muito
nossas vidas.
O homem é a soma daquilo que ocorre a sua volta, quando
uma pessoa convive um determinado período com outra, influencia seu jeito de
viver, suas ideias. Mas com o passar do tempo, você pode se modificar novamente
e não serem mais parecidos. Depois de tanto tempo eu mudei, e muito. Certamente não temos as mesmas ideias e ideais. Mas a
essência, aquela esperança que um dia ele depositou em mim, e todas suas
consequências... bem... esta ficou.